Desabafo de uma Bombeira

“E agora nós…

Acabei de sair do incêndio de Piódão e Covilhã. Foram mais de 24 horas no terreno, descanso pouco, a lutar contra um monstro de fogo que não dá tréguas. Arde floresta, ardem memórias, ardem vidas de quem sempre cuidou da terra.

Mas vamos ser objetivos: isto não é apenas fogo.

É falta de planeamento, é falta de gestão florestal, é ausência total de prevenção. Ano após ano, tudo se repete. Somos bombeiros a correr atrás do prejuízo, sempre a remendar, o que nunca foi prevenido.

Pedrógão foi há oito anos. Morreram 66 pessoas, morreram bombeiros, e prometeram-nos mudanças. Onde estão?!Nada mudou.

Continuamos a combater incêndios em terrenos totalmente abandonados, sem acessos, com mato até ao joelho, sem faixas de contenção, sem as mínimas condições de combate. Continuamos a ver colegas a morrer! Continuamos a aceitar receber um valor hora vergonhoso, miserável, que não tem nada a ver com o que passamos em cada teatro de operações.

E depois, quando tudo arde, surge sempre a mesma questão: quem ganha com isto?!

A terra arde… e no lugar da floresta aparece um campo de painéis solares…

A terra arde… e logo a seguir surgem interesses no lítio, nas minas, nos parques eólicos…

É assim que se faz “gestão do território” em Portugal: deixa-se arder e depois entrega-se ao privado.

Os mesmos que falham na prevenção são muitas vezes os mesmos que abrem portas para o negócio depois da tragédia.

Chamam-nos heróis quando tudo arde e mais ainda quando morremos. Mas quando o fogo se apaga, voltamos a ser os mesmos de sempre. O país só se lembra dos bombeiros no momento da fotografia, nunca no momento de nos dar DIGNIDADE.

Eu estive lá, mais de 24 horas a respirar fumo, a carregar lances de mangueiras, a suportar o calor das chamas, a lutar contra o cansaço. Dei agora lugar a outra equipa, que seguirá na mesma luta desigual.

E digo-vos: não estamos só a combater incêndio. Estamos a combater um sistema que vive da tragédia, do esquecimento e do interesse.

– Enquanto continuarmos a varrer as cinzas para debaixo do tapete, Portugal vai continuar a arder.

– Enquanto os interesses privados falarem mais alto que a vida das pessoas, a floresta e os bombeiros vão continuar a ser descartáveis.

– Enquanto não houver coragem, nós vamos continuar a ser o último escudo… Mal pago, mal lembrado, mas sempre presente.

– Enquanto existirem isqueiros com pernas, este TERRORISMO não vai acabar.

Força e muita coragem para os que ainda tentam salvar alguma coisa e alguém.

Que não digam depois que ninguém avisou.”

 

Texto e fotografia de Alexandra Almeida

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